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03/11/2016

O legado dos anos 80

Crítica cinematográfica

A primeira temporada de Strangers Things, série original da Netflix criada pelos irmãos Duffer e lançada no dia 15 de julho, foi sucesso entre todas as idades. Nos primeiros minutos os personagens Lucas (Caleb McLaughlin), Dustin (Gaten Matarazzo), Will (Noah Schanapp) e Mike (Finn WolfHard) brincam com o famoso jogo dos anos 80, o RPG, no qual travam uma batalha com um monstro fictício. No começo parece ser apenas mais uma série de crianças que traçam a jornada do herói de forma linear e no fim o mocinho vence o mal, mas Stranger Things fugiu do óbvio e deixou um gosto de quero mais.

O misterioso sumiço de Will, de apenas 12 anos, causou alvoroço na pacata cidade de Howkins, Indiana. A polícia local, família e amigos do menino fazem buscas incessantes atrás de provas que expliquem o desaparecimento. Um grande mistério envolve um experimento secreto do governo, forças sobrenaturais e uma garotinha estranha. E assim como no RPG, a trama se desenrola por meio das análises de cada situação feita pelas crianças até ocorrer o desfecho. A série combina suspense, terror sobrenatural e paranoia real. Esse emaranhado de fatos prendeu minha atenção e me fez assistir às oito horas de cenas, divididas em oito capítulos, em apenas um dia.

Minuciosamente estilizado nos anos 80, a série cria nostalgia desde a trilha sonora, com músicas, como “Should i stay or should i go”, da banda The Clash, que fizeram parte dos famosos punks rocks da época, até a construção dos figurinos, com calças de cintura alta e blusas coloridas ou de listras horizontais em cores alternadas. O principal legado dos anos 80 para o cinema foram os maravilhosos filmes de terror, ação e suspense. E os autores de Strangers Things não tiveram medo da série ser uma reprodução de filmes que já existem; fizeram uma bricolagem com diversos clássicos do cinema, sendo as principais citações obras de Steven Spielberg e Stephen King, autores importantes para o período.

Na construção da personagem Eleven, menina misteriosa com poderes psíquicos, vivida por Millie Bobby Brown, percebe-se a alusão intertextual com o filme O Iluminado (1980), baseado no romance de Stephen King. Na filme um escritor (Jack Nicholson) sofre de problemas psicológicos e se isola em um hotel com a família; seu filho passa a ter visões de acontecimentos do passado, assim como a personagem Eleven. Em ambos os casos as visões foram causadas pelo isolamento excessivo. Com vestido rosa claro, Eleven também lembra o charmoso E.T de O Extraterrestre (1982), que assim como a menina teve o papel fundamental de proteger os protagonistas e ajudar no desfecho da história. Outra referência para a personagem de Millie Bobby em Strangers Things é Firestarter (1984), no qual Charlene Mc Gee, interpretada por Drew Barrymore, usa o poder da mente para se livrar das diversas situações.

As bicicletinhas de The Goonies (1985) estão presentes no enredo e é com elas que as crianças desbravam a cidade em busca do amigo perdido. Outros filmes, como Stand by me (1986), Aliens (1979), The Shining (1980), também compõe o contexto intertextual e ajudam na estilização do cenário dos anos 80. As referências estão explícitas, porém os autores conseguiram tornar a série única e original. Outras séries disponíveis na Netflix também apostam no remake das décadas passadas, De That '70s show (anos 1970); Mad men (anos 1960) e Masters of sex (anos 1950), porém nenhuma delas conseguiu alcançar públicos tão diferentes como Stranger Things: de adolescentes a cinquentões.

Os irmãos Duffer acertaram em cheio na escolha do elenco. As crianças como protagonistas deixaram o enredo leve e aventureiro. A presença do terror como citação intertextual dos clássicos do cinema valorizou a cultura dos anos 80, mas os autores não deixaram de dar um toque de modernidade fazendo perfeitos monstros com computação gráfica e usando música eletrônica para fazer a abertura de Stranger Things. O enredo fecha seu ciclo deixando vestígios para uma segunda temporada, porém seria perfeitamente aceitável se essa continuação não fosse anunciada, o que deixaria a cargo da imaginação do público o desfecho das famosas perguntas presente nos finais dos filmes: Mas o que aconteceu com aquele personagem?