Entrelinhas / Edições

03/11/2016

Conversa ao pé da jabuticabeira

Perfil jornalístico

Sob a sombra de uma jabuticabeira carregada de frutos ainda verdes, observo seu lento caminhar auxiliado por um andador metálico até se juntar a mim. Vem com a mesma calmaria da brisa das árvores que nos rodeiam em uma tarde ensolarada. A idade lhe pesa. Não possui a firmeza e a vitalidade de anos atrás, movimentos simples lhe obrigam a fazer grandes esforços. Ao se aproximar sorri: “Demorei, mas cheguei!” No olhar traz as mágoas, tristezas e alegrias de uma vida toda. Ela é uma história sem precisar dizer nada. Uma entre tantas outras Marias que existem por aí. Tem 79 anos, três filhos, sete netos e um bisneto. Nasceu em 1938 na cidade de Buriti Alegre e não pôde desfrutar muito do que a infância nos oferece de melhor. “Ta vendo essas mãos? Carregaram tantos baldes de água e cestos de café que ninguém seria capaz de contar.” De tanto trabalho desde cedo, levando muito peso sobre os ombros hoje em dia não consegue sequer manter a coluna ereta, sente muitas dores e tem uma saúde frágil. Como tantas vezes, está diante de mim vestindo uma saia rodada marrom e uma blusa florida. Enquanto fala mantém o olhar distante, como se revivesse na cabeça e no coração detalhes que ficaram no tempo. Cresceu em uma família humilde, ao lado do pai, da mãe e de quatro irmãos. Criada na “roça”, começou a trabalhar no campo aos oito anos e aos dez seu pai lhe deu seu primeiro cigarro. “Toma aqui que é pra espantar os mosquitos.”

Maria passou fome; não foi a escola, pois começava a trabalhar antes do sol nascer; apanhava muito da mãe. Mesmo com tudo isso diz que teve uma infância feliz. “Eu e meus irmãos éramos muito amigos, a gente aprontava muito, brincava muito. Porque só assim pra gente esquecer que levava uma vida de adulto antes da hora.” Nesse momento a emoção a deixa em silêncio por alguns instantes, as mãos ficam inquietas e ela fecha os olhos. Ouço ainda inúmeros relatos de uma infância sofrida, mas também de um pai amigo e defensor. Seu pai era um típico matuto, criado na roça, não sabia ler e também teve vida sofrida, mas tinha um coração muito bondoso. Ela o descreve com um homem baixinho, com um cigarro de palha na boca e sempre de sapato. Nunca calçava chinelo porque decepou os dedos do pé esquerdo com a inchada. Ela se emociona muito ao falar do pai, dizendo que ele foi, sem dúvida, seu melhor amigo e seu maior defensor. “Meu pai não pôde me dar brinquedos, mesa farta, luxo, mas foi a pessoa que me deu mais amor e era só disso que eu precisava.” Ela se lembra das vezes em que havia baile na cidade e seu pai fazia serviço dobrado pra ela poder comprar tecido pra fazer um vestido. Nesse momento a emoção fica muito forte e ela se levanta um pouco e vai fumar seu cigarro. O calor é intenso, mas a paisagem muito favorável: muitas plantas, flores, um pé de acerola carregado de frutos vermelhos como sangue e uma jabuticabeira sem espaço para nascer mais nenhum fruto. É sua parte preferida da casa, mas onde passa menos tempo devido a sua dificuldade de locomoção.

Depois de alguns minutos ela volta sorrindo. “Me diz até onde você quer que eu fale senão vou passar o dia te contando histórias.” Não falei, já que aprendi que um bom jornalista não deve limitar sua fonte, porque o melhor pode ainda estar por vir. Peço a ela que me conte tudo que sentir vontade, porque essas coisas que vêm a nossa mente com facilidade são as que definem melhor quem somos. Ela senta em sua cadeira de cordas azuis, o vento balança seus cabelos lisos e completamente brancos, fecha os olhos e franze a testa como quem diz ‘onde é que eu estava mesmo?’ Começa a me contar então sobre sua mocidade: os bailes, os cortejos e a simplicidade de uma juventude bem distante do que vemos hoje. “Festa era comigo! Enquanto passava o dia trabalhando, minha tia costurava um vestido pra mim. Era muito vaidosa, gostava de me enfeitar para ser tirada pra dançar muitas vezes.” Em uma dessas danças se apaixonou por um rapaz chamado Paulo.  Disse que foi amor à primeira vista. Ele havia acabado de se mudar para a cidade pra ajudar o tio a tocar a fazenda. E apareceu pela primeira vez em uma festa na praça da igreja. Todas as moças ficaram de olho quando ele chegou, porque nunca tinham visto ele pelas redondezas e era um rapaz muito bonito.

“Fui a primeira moça que ele tirou pra dançar e a única. Conversamos sobre muitas coisas e nos encontramos outras tantas vezes na igreja, nas folias e também na cidade.” Começaram um namoro escondido; ela tinha 14 anos e ele 22. Não era um namoro nada parecido com os de hoje. Se olhavam de longe e quando se encontravam apenas seguravam nas mãos, as vezes se abraçavam e ele beijava sua mão na despedida. Mas já falavam em casamento, família grande e uma casinha aconchegante. Foi chegada a hora de Maria contar aos seus pais sobre o interesse de Paulo em se casar com ela. Seu pai Francisco fez muito gosto do casamento, mas sua mãe foi contra e disse que já havia prometido sua mão a outro rapaz de situação financeira melhor. Maria perdeu o chão debaixo de seus pés, ficou desesperada, implorou à mãe que a deixasse casar com quem ela amava, mas sua mãe a proibiu de se encontrar com Paulo novamente.

Após Maria beber um copo de água, conheço a continuação da história. Não é algo que ela conte com facilidade, a voz está embargada e as mãos inquietas novamente fazendo o contorno da barra de sua saia.  Me encontro com a visão embaçada diante de uma história que não conhecia. Todo mundo tem histórias para contar e uns tem histórias para esconder, não porque não seja algo digno de ser lembrado, mas por ser tão dolorido de dizer. E então eu pergunto ansiosa: “E o que aconteceu?” E ela me responde serena, que dias depois o encontrou e contou o que sua mãe havia dito, e eles decidiram fugir juntos. Marcaram o dia e o horário, ele iria buscá-la no meio da noite a cavalo, e ela iria lhe esperar no alpendre da casa quando todos já estivessem dormindo. O único que sabia do plano era seu irmão mais velho e estava fazendo de tudo para ajudar os dois. No meio da madrugada do dia marcado a jovem Maria escuta ao longe um cavalo se aproximar. Tomada pelo medo disse ao irmão “Não posso fazer isso com meu pai.” Saiu correndo para dentro de sua casa. Não fugiu. Como ela mesma me disse, não casou com o amor de sua vida. Casou, meses depois, com o homem que sua mãe escolheu. Paulo ficou muito sentido e no mesmo dia foi embora da cidade e nunca mais Maria o viu, nem soube notícias dele. “Eu sinto que ele está vivo. Algo aqui dentro de mim me diz que o coração dele ainda está batendo. Penso nele em segredo todos os dias nos últimos 65 anos e agora você sabe e outras pessoas também vão saber.” Dá um largo sorriso ao dizer isso. Pergunto por que depois de tantos anos ela decidiu me contar tudo. Ela me responde com emoção que vem eternizando essa história em seu coração a vida toda e que as únicas pessoas que sabiam do acontecido já morreram há muito tempo; então ela achou por bem me contar para eu poder eternizar sua história de amor. E nada mais eterno do que as palavras.